Atriz de ‘O Gambito da Rainha’ vira estrela em ascensão com papéis que desafiam convenções | Manual da Mulher
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Atriz de ‘O Gambito da Rainha’ vira estrela em ascensão com papéis que desafiam convenções

Nascida em Miami, a atriz de 24 anos diz que o sentimento de não pertencimento a acompanhou por boa parte da vida, como acontece com a sua nova personagem, que é órfã, sem raízes, e se sente deslocada dentro do universo hipermasculinizado do xadrez

Nos filmes de terror, as mocinhas costumam conquistar o público pela aflição que causam ao fugir de criaturas sobrenaturais ou assassinos em série, gritando desesperadas a plenos pulmões por um socorro que parece nunca chegar. Mas algumas dessas protagonistas não são tão indefesas assim. É o caso de Thomasin, a camponesa do século 17 de “A Bruxa”.

A jornada de adolescente inocente e enigmática a mulher com personalidade e forte presença parece emular a da própria atriz que a interpretou, Anya Taylor-Joy. Quando estreou nos cinemas em “A Bruxa”, em 2015, ela e o longa foram engolidos por elogios de crítica e público, que rapidamente transformaram a tímida atriz numa estrela em ascensão de Hollywood.

“Eu tive um ataque de pânico na frente do diretor Robert Eggers quando fui fazer o teste para a personagem. E aí ele disse ‘essa garota pode fazer papel de histérica, vamos dar o trabalho para ela'”, diz Taylor-Joy, ao lembrar o começo de sua carreira, em conversa por videoconferência. “Descobri que se um roteiro me deixa assim, é um bom sinal –não é necessariamente algo divertido, mas bom.”

De lá para cá, seu rosto vem aparecendo com frequência nas telas. Ela estrelou filmes independentes que foram sucessos modestos, como “Emma” e “Barry”, e também orçamentos robustos de grandes estúdios, como “Os Novos Mutantes”, adaptação dos quadrinhos da Marvel. Agora, no streaming, ela parece ter alcançado uma audiência ainda mais ampla e variada.

Em outubro, chegou ao catálogo da Netflix a minissérie “O Gambito da Rainha”, sem muito alarde e com uma ambientação –o universo do xadrez– que parecia pouco estimulante para o público mainstream. Críticas esfuziantes logo trataram de pôr a produção nos rankings de mais vistos em vários países –foram 92, entre eles o Brasil.

O repentino sucesso resultou no recorde de minissérie de ficção mais vista de toda a história da Netflix, com 62 milhões de assinantes apertando o play para ver “O Gambito da Rainha” em seus primeiros 28 dias de existência.

Os números surpreendem, mas perdem um pouco de força por virem de uma empresa pouco afeita a divulgar dados de audiência ou de assinantes. Além disso, para declarar um conteúdo “visto”, o streaming considera que o espectador tenha assistido a só dois minutos dele ­–um padrão bem mais flexível do que o adotado na TV tradicional.

Mas é inegável que a série foi bem recebida, o que não surpreendeu em nada Taylor-Joy.

“Isso é engraçado, porque me perguntaram outro dia se eu tinha aceitado esse papel porque sabia que a minissérie seria a número um no mundo. Eu respondi ‘sim, é claro'”, diz ela, fazendo piada. “Mas o sucesso vem do fato de essa história não ser só sobre xadrez. O xadrez é o mundo em que ela se passa, mas a minissérie fala sobre uma pessoa oprimida que supera os obstáculos –e isso é algo universal.”

Por trás do semblante compenetrado e dos movimentos de mão precisos da protagonista de “O Gambito da Rainha”, a enxadrista prodígio Beth Harmon, Taylor-Joy enxerga um pouco de sua própria trajetória –basta trocar as peças amadeiradas do jogo pelos holofotes cinematográficos que recaíram sobre ela.

Nascida em Miami, a atriz de 24 anos diz que o sentimento de não pertencimento a acompanhou por boa parte da vida, como acontece com a sua nova personagem, que é órfã, sem raízes, e se sente deslocada dentro do universo hipermasculinizado do xadrez.

A mãe de Taylor-Joy é da Zâmbia, enquanto o pai é um escocês que se aventurou por diversas carreiras. Por causa dessas mudanças, ela passou parte da infância em Buenos Aires até a família ser transferida para Londres. Ao falar da Argentina, seus olhos brilham e um sorriso rasga seu rosto –”sinto falta de falar espanhol toda hora”, lamenta.

A América Latina estaria fora de sua rota de viagem nos próximos anos. Na adolescência, ela passou a dividir seu tempo entre Nova York e a capital britânica, já mirando a carreira de modelo –mesmo insistindo em entrevistas que não se considera uma pessoa bonita. Talvez sejam seus olhos amendoados, de beleza não muito convencional, mas absolutamente hipnotizantes.

O fato é que o destino de Taylor-Joy provou estar não nas passarelas, mas em Los Angeles. Assim como a camponesa do terror e a enxadrista da série, os trabalhos que compõem sua curta carreira parecem todos falar de figuras marginalizadas, que tiram força de suas frustrações.

É assim com a superpoderosa incompreendida de “Os Novos Mutantes”, com a adolescente com um passado de abusos de “Fragmentado” e “Vidro”, ambos de M. Night Shyamalan, e com a humanoide criada em laboratório de “Morgan: A Evolução”.

Taylor-Joy reconhece um padrão nos personagens que ela vem interpretando. Segundo ela, são todos forasteiros, com excentricidades e jornadas pessoais intensas, que desafiam convenções. Foi ao lado deles que ela construiu a sua fama, num caminho oposto ao tomado por boa parte dos aspirantes a astros de sua geração, habitués das comédias românticas e séries criadas para os adolescentes.

“Olhando para a minha trajetória eu percebo que eu tinha pendências a resolver e coisas a descobrir”, ela afirma. “A primeira vez que eu senti que pertencia a algum lugar foi quando pisei num set de filmagem e isso aconteceu quando eu tinha 18 anos. Foram 18 anos da minha vida sentindo que eu não me encaixava em lugar nenhum.”

Agora, finalmente em casa, Taylor-Joy quer aproveitar o reconhecimento que tem recebido, e os convites que chegam com ele, para passar mais tempo nos sets. A seu favor ela tem boas bilheterias e a audiência nas telinhas –não apenas em “O Gambito da Rainha”, mas numa das temporadas da prestigiada “Peaky Blinders”.

Um prêmio de atriz revelação em Cannes, o troféu Chopard, conquistado em 2017 –e já concedido a Rodrigo Santoro e Marion Cotillard–, ainda engrossa seu jovem mas já robusto currículo, fazendo dela uma das atrizes mais destacadas de sua geração.

Nos próximos anos, o rosto de Taylor-Joy continuará ilustrando alguns projetos de peso. A atriz deve aparecer em seis filmes já anunciados ou em fase de produção, sempre com protagonismo.

Ela vai se juntar ao diretor Edgar Wright em “Last Night in Soho”, reencontrar Robert Eggers para “The Northman” e ser a estrela de “The Sea Change”, a estreia de Kristin Scott Thomas na cadeira de diretora.

A atriz também vai retomar a parceria com Scott Frank, criador de “O Gambito da Rainha”, numa adaptação de Nabokov. Sob a batuta de George Miller, vai viver uma versão jovem de Furiosa, personagem de Charlize Theron em “Mad Max: Estrada da Fúria”.

Ao que parece, os dramas densos e as personagens complexas vão continuar pautando a carreira de Taylor-Joy no futuro próximo. Mas a atriz espera se render ao apelo da adolescência em breve. Numa jogada inesperada, ela foi escalada para protagonizar a adaptação de “Weetzie Bat”, livro “coming of age” que mergulha nos corredores colegiais e nos amores juvenis.